Falta de denúncias formais aos órgãos de segurança dificulta mapeamento e combate do problema
Todos os dias quando estaciona o veículo na rua de trás da empresa onde trabalha, Maria Alice (nome fictício) sente uma enorme apreensão. “Deixo meu carro sem saber se vou encontrá-lo intacto quando voltar”, afirma. O medo dela é provocado pela quantidade de flanelinhas que a rua, localizada na cidade de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, vem abrigando nos últimos meses. “Um (flanelinha) já me mandou tirar o carro da vaga caso eu não fosse pagar pelo serviço dele e, sempre que chego, ele já me ameaça com o olhar”, diz a mulher que pediu anonimato sobre o nome verdadeiro. Com medo, ela acaba cedendo à pressão e opta por estacionar longe do local. Essa situação vivida por ela, apesar de corriqueira na Grande BH, tem nome e é crime: extorsão. De tão comum, no entanto, nem chega a ser denunciada para as autoridades policiais.
A cena de apreensão de condutores e suposta ameaça de guardadores informais não é de hoje, e nem exclusividade da cidade vizinha da capital mineira. Em Belo Horizonte, segundo a Guarda Civil Municipal, até abril, foram 51 denúncias de cobrança por estacionamento de automóveis em áreas públicas, frequentemente associada a ameaças e caracterizada como crime de extorsão. No ano passado, foram 181, e em 2023, foram 233 denúncias.
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Em dias de grandes eventos na capital, como corridas, shows e jogos nos estádios, a dificuldade de encontrar vagas para estacionar agrava o cenário. Há alguns dias, durante uma corrida que reuniu milhares de pessoas na região da Pampulha, a reportagem flagrou cenas que ilustram a vulnerabilidade dos motoristas da capital. “Flanelinhas” paravam na frente dos veículos “orientando” locais para estacionamento, vários desses pontos de parada proibida, e já cobravam o valor. Quem não estivesse disposto a pagar, cerca de R$ 30, pelo uso do espaço público, tinha que buscar vagas em áreas muito mais distantes.

Em Contagem, cidade onde a Maria Alice trabalha, não houve uma contabilização formal de casos, porque, assim como ela, outras possíveis vítimas não denunciam a prática aos órgãos competentes. “Eu não falo nada, tenho medo dele saber que denunciei e fazer algo”, lamenta Maria Alice.
A Transcom, empresa que administra o trânsito em Contagem, disse que a falta de denúncias oficiais impede a quantificação dos casos e reforça que, formalizar as denúncias é essencial para que as autoridades possam agir com eficácia e mapear a incidência desses casos. O mesmo é indicado pela Polícia Militar de Minas Gerais, que, por nota, orienta a população a acionar o 190 em caso de ameaça explícita ou velada por parte de tomadores de veículos.
Para o especialista em criminalidade e segurança pública Orlando Conde Filho, entretanto, apenas acionar os órgãos de segurança não é eficaz. Na visão dele, é necessário uma ação conjunta para combater o problema. “A situação já chegou num ponto que ninguém faz nada se eles (flanelinhas) não deixarem. Falta fiscalização, falta controle, e a população, em partes, permite que isso ocorra. Já é mais um exemplo de problema social em que fica mais fácil para o cidadão falar ‘isso é problema da PM e não meu’ e deixar a situação se cristalizar, virar um hábito. Por outro lado, se toda vez que alguém for coagido por um flanelinha, ligar 190, a PM não vai fazer mais nada”, pontuou Conde.
Em Minas Gerais, nem a Polícia Militar, nem a Secretaria de Segurança Pública forneceram dados sobre denúncias ou ocorrências sobre o ato de pedir dinheiro para vigiar um veículo (ou qualquer outra coisa), já que pedir dinheiro não configura crime no Brasil. Passa a ser passível de punição quando se torna extorsão, que, muitas vezes, vem associada a esses casos de vigilância de veículos nas ruas. Contudo, um projeto de lei, de autoria da deputada Silvye Alves (União-GO), quer proibir a prática de cobrança para estacionar em via pública, sob pena de multa e outras sanções administrativas.
“O Projeto de Lei 404, de 2025, visa a combater a prática conhecida como ‘flanelinha’, onde indivíduos não autorizados se apropriam de espaços públicos, oferecendo serviços de vigilância de veículos e cobrando valores para tal, sem qualquer respaldo legal. Essa prática pode gerar insegurança e abusos contra os motoristas, além de prejudicar o bom uso do espaço público”, justifica a parlamentar no texto de apresentação do projeto.
O especialista não acredita que a solução seja tipificar como criminosa a postura dos flanelinhas e sim, incentivar a população a não aceitar a cobrança, além de exigir dos órgãos competentes a fiscalização nas vias. “Vai tornar crime o que é crime. O flanelinha que exige R$ 30, R$ 50 reais para que alguém estacione comete extorsão. A situação pode acabar se houver uma campanha conjunta, educativa, em que o poder público dê a segurança aos motoristas para que eles não sejam vítimas dessa ação. Acredito também em uma ação com comerciantes e donos de estabelecimentos onde a prática é recorrente, avisando sobre o público esperando, fornecendo imagens de segurança para reconhecimento dos infratores, e, claro, a polícia e a guarda fazerem seus papeis”, completou.
Ações feitas até agora
A Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte (GCMBH) informou que realiza a Operação Flanelinha para mapear, identificar e combater a prática ilegal de cobrança por estacionamento de automóveis em áreas públicas, frequentemente associada a ameaças e caracterizada como crime de extorsão. O monitoramento acontece em cerca de 60 pontos da cidade e, mensalmente, a corporação realiza cerca de 240 fiscalizações.
Em Contagem, a Transcom informou que o combate à atuação de flanelinhas é realizado por órgãos como a Guarda Municipal e a Polícia Militar, por meio de operações, fiscalizações e atendimento a denúncias. Além disso, o órgão reforça a importância de utilizar o sistema de estacionamento rotativo oficial, que garante a rotatividade das vagas e contribui para a melhor organização do trânsito na cidade.
A Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) disse que realiza atividades preventivas com a finalidade de coibir esta prática delituosa e orienta ao condutor que for vítima de qualquer tipo de constrangimento no momento de estacionar seu veículo, que acione imediatamente, a Polícia Militar, via 190.
FONTE: OTEMPO