Evento reúne produtores locais em meio a atrações musicais e experiências enogastronômicas
A relação de Minas Gerais com o vinho é antiga. Em 1816, o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire já registrava videiras nos quintais de Diamantina, chegando a registrar surpresa com a presença da cultura em pleno Vale do Jequitinhonha. Séculos depois, coube a Juscelino Kubitschek, já na Presidência da República, a tentativa de formalizar essa vocação. “JK realmente foi importante, até criou um centro de pesquisa em Diamantina (desativado pelo regime militar 17 anos depois). Ele era um grande entusiasta do vinho mineiro”, lembra José Procópio Stella, da Vinícola Stella Valentino, cuja família produz vinhos desde 1910, ainda que, como ele mesmo admite, “era um vinho muito simples, só para consumo próprio”.
O viticultor ainda menciona que Minas já produzia a bebida, na região Sul do Estado, mais precisamente em Andradas, desde 1883. “Eram vinhos de mesa porque a gente fazia a colheita dessas uvas no verão – e o nosso verão aqui é muito úmido. Então, a gente não conseguia, com as uvas europeias, fazer vinhos de qualidade”, situa, falando de uma dinâmica que mudou de uns anos para cá, quando os quintais desses produtores passaram a conviver com aroma das parreiras carregadas da fruta madura em pleno inverno mineiro. O fenômeno não é um simples acidente da natureza, mas resultado da adoção de uma tecnologia, desenvolvida pela Epamig, que passou a permitir que o Estado finalmente produzisse vinhos finos, dando um novo fôlego para uma tradição secular.
Essa história é celebrada, entre 30 de maio e 8 de junho, no Festival Vinho e Jazz 2025, em Tiradentes, na região de Campos das Vertentes, onde produtores locais apresentam rótulos que já conquistaram paladares exigentes, angariando premiações mundo afora. Entre eles, claro, está José Procópio Stella. A virada, em seus próprios vinhedos, veio em 2002, justamente com a adoção do novo método de realização da safra da uva. “A partir do momento em que conseguimos fazer a colheita no inverno, transferir a colheita para o inverno, aí sim conseguimos ter uvas de altíssimo nível e, consequentemente, vinhos de altíssima qualidade”, explica.

Hoje com 74 anos, José Procópio produz, em média, 20 mil garrafas por ano, incluindo rótulos de três uvas: a Sauvignon Blanc – “uma uva-branca, muito aromática, um vinho próprio para o verão, com muitas notas de frutas tropicais, como maracujá, goiaba, jambo” –, a Syrah – “uva-tinta, francesa, usada em duas linhas: um vinho sem passagem por barrica, sem interferência externa, e um que passa na barrica por 12 meses, mais complexo, com notas de fruta e da madeira –, e a Tempranillo Gran Reserva – “que temos na forma de rosé e também o Gran Reserva, que passa 12 meses em barrica de carvalho”. Com este último, o viticultor conquistou o prêmio da Grande Prova Vinhos do Brasil, edição de 2025, realizada no mês passado.
Novos produtores
Conhecedor do ramo, José Procópio Stella explica que Minas é um Estado que possui muitos terroirs. “Aqui estamos na Mantiqueira, mas também temos a Cordilheira do Espinhaço, a Serra da Canastra, o Cerrado Mineiro… Então, descobrimos uma nova forma de produzir vinho e também um novo negócio para os produtores rurais de Minas Gerais que estão dentro dessas áreas mais propícias”, aponta, inteirando que muitos dos produtores que estão entrando no mundo do vinho hoje são pessoas esclarecidas. “A maior parte não vem do agro, mas são pessoas bem-sucedidas em outras atividades. E, com certeza, muitos desses projetos vão vingar”, aposta.
É o caso da Vinícola Mil Vidas, cuja história encarna, na figura de seu proprietário, essa ousadia de quem decidiu mudar de vida para abraçar a viticultura. Ocorre que Wander Oliveira, um engenheiro de 63 anos, deixou para trás uma carreira no setor de energia em 2020, no auge da pandemia, para se dedicar ao vinho. “Era o início da pandemia e eu trabalhava como executivo. Decidi encerrar minha carreira, mas não estava preparado para ficar sem uma ocupação”, narra. Sem experiência no agro, mas com paixão pelo tema, ele mergulhou de cabeça no projeto.
“Sempre gostei muito de vinhos e conhecia a história e a qualidade do vinho de inverno”, ressalta. Em apenas três anos, sua produção saltou de 10 mil garrafas (2023) para 13 mil (2024), com vinhos como o Syrah tinto – “vermelho rubi profundo, com aroma de frutos negros e especiarias” –, o Syrah Rosé – “rosa límpido e brilhante, com aroma agradável, delicado, talco, romã, leve pêssego” – e o Sauvignon Blanc, que ele descreve como “amarelo palha muito claro, com toques de fruta tropical, maracujá, leve abacaxi e herbáceo sutil”.

Oliveira sustenta que, dos vinhos de inverno do terroir de sua região, os apreciadores podem esperar vinhos excelentes, com bastante estrutura, bom corpo, taninos equilibrados e potencial de guarda. Ele detalha que a colheita é feita manualmente uma vez por ano, geralmente nos meses de julho a agosto, só sendo possível desta forma devido ao uso da técnica da dupla poda, que altera o tempo de maturação da uva.
Para o viticultor, no entanto, o crescimento do setor ainda esbarra em desafios estruturais. “O Governo de Minas tem ajudado na divulgação do vinho mineiro, mas há outras iniciativas que poderiam ajudar bastante. Seria de grande importância a eliminação da substituição tributária do ICMS, como já foi feito por outros estados”, defende. “O enoturismo traz muitos benefícios para o estado e para região onde se localiza. No nosso caso, por exemplo, empregamos mão de obra local no nosso vinhedo e nosso restaurante, utilizamos produtos regionais e trazemos turistas que usufruem de outros serviços na região como hotelaria, transporte e restaurantes”, argumenta.
Recém-chegada
Já a Vinícola Trindade, fundada em 2021 e comandada pela administradora Kenia Menezes, de 52 anos, representa a nova geração de produtores que busca conciliar autenticidade e sofisticação. Localizada a 7 km de Tiradentes, a propriedade está prestes a colher sua primeira safra, com estimativa de 4.000 garrafas. “Nos anos seguintes, esperamos alcançar gradualmente a capacidade total do vinhedo, com até 6.000 garrafas por safra”, expõe.
Para o início da produção, o primeiro passo foi a certificação de que o solo e o microclima da propriedade eram propícios para viticultura de inverno. “Decidimos a partir daí investir na produção de vinhos autorais com identidade mineira”, detalha ela, que cultiva as uvas Syrah e Sauvignon Blanc. A primeira, descreve Kenia, resulta em um vinho tinto elegante, com corpo médio a encorpado, boa acidez, notas de frutas negras maduras, pimenta-do-reino e um leve toque mineral – “reflexo do nosso solo arenoso, com alta concentração de quartizito e da altitude”. Já a última, prossegue, é usada na produção de um vinho branco fresco e vibrante, com aromas cítricos, florais e herbáceos, corpo leve e final refrescante, ideal para o clima da região e para harmonizações locais.

Para a viticultora, Minas vive um momento de renascimento da enocultura. “O Brasil, em toda sua extensão territorial, sempre surpreende e acredito que estamos vivendo a oportunidade de apresentar para o mundo o surgimento de um novo terroir. O uso da poda invertida tem sido decisivo para viabilizar a colheita no inverno, quando o clima é seco e estável, permitindo maior controle da maturação e sanidade das uvas”, exalta, classificando o terroir daquela região se caracteriza por uma altitude elevada – acima de 1.000 m –, boa insolação, noites frescas e solos bem drenados “Fatores que favorecem a produção de vinhos com acidez equilibrada, frescor e identidade própria”, analisa.
Kenia defende que, para deslanchar de vez, os produtores precisam de apoio técnico contínuo, incentivos à profissionalização, linhas de crédito específicas e canais de distribuição mais estruturados. Ela acrescenta que também vê no enoturismo uma ferramenta essencial para a divulgação dos rótulos mineiros.
Festival Vinho e Jazz 2025 celebra terroir mineiro
Para o organizador e coordenador de produção do Festival Vinho e Jazz 2025, Alexandre Minardi, o evento representa uma celebração da descoberta dos terroirs mineiros, indo além de uma simples reunião de apreciadores de vinho e música.

“O público encontrará uma estrutura acolhedora e cuidadosamente montada no Largo da Rodoviária, pensada para proporcionar uma experiência aconchegante em Tiradentes”, adianta, destacando que os grandes destaques desta edição incluem apresentações musicais gratuitas, além de degustações e experiências enogastronômicas que colocam vinhos mineiros selecionados no centro da cena.
A curadoria dos rótulos vindo de outros países, explica, foi feita em parceria com especialistas e com o apoio da Liber Wines, importadora oficial do festival. “Já no cenário nacional, especialmente no contexto mineiro, buscamos incluir vinícolas que se destacam pela qualidade e autenticidade de seus produtos”, acresce.
“O principal objetivo é disseminar a cultura do vinho para as pessoas que não têm tanto costume”, examina o organizador. Para ele, “o vinho é uma paixão, muito mais do que uma bebida: é cultura, é celebração, é encontro, está ligado à alegria, ao contato com os amigos, com os familiares, aos brindes do que há de bom” – e essa filosofia se alinha perfeitamente com o momento vivido por Minas Gerais, que, ressalta, “não é mais só café, queijo e doce, é também vinho”.
FONTE: OTEMPO