Autor do livro “O Dia em Que Eva Decidiu Morrer” contesta a ideia de prolongar a vida ao máximo e aborda meios de deixar a existência com dignidade
Em outubro de 2024, o poeta Antonio Cicero – letrista de sucessos de sua irmã Marina Lima como “Fullgás” e “À Francesa” – viajou à Suíça para ter acesso ao procedimento conhecido como “morte voluntária assistida”, ou MVA, em que o próprio paciente injeta uma dose letal no organismo, após ter sido diagnosticado com Alzheimer. O cineasta Jean-Luc Godard recorreu ao mesmo expediente em 2022, quando morreu, aos 91 anos. Pessoas próximas declararam que “ele não estava doente, mas apenas exausto”.
O debate em torno de um tema tabu como a morte, e, principalmente, a escolha em não prolongar a vida indefinidamente à custa de sofrimentos e doenças incuráveis, motivou o livro “O Dia em Que Eva Decidiu Morrer”, publicado pelo jornalista Adriano Silva em março.
Ali, ele relata a história de pessoas que optaram por encerrar a vida, e, consequentemente, o sofrimento advindo de situações excepcionais. Todas as personagens são referidas através de pseudônimos para preservar suas identidades. É o caso de Eva, filósofa brasileira de 74 anos, que, após sofrer um acidente vascular cerebral, seguido por uma convulsão, sofreu sequelas que tornaram a vida um martírio.
“Acho que a história de Eva, o eixo central do livro, é o relato que mais me impactou, pela riqueza de detalhes e por ser a primeira vez em que se revela no país a jornada completa de uma pessoa brasileira que optou por viajar à Suíça para exercer seu direito de morrer com dignidade”, salienta Adriano. Segundo ele, as histórias que aborda no livro, “de pessoas reais que escolheram deixar de existir quando a vida se tornou um martírio sem fim, mostram que há situações que são piores que a morte…”.
“Em algumas situações de grande sofrimento, as pessoas precisam ter acesso a um ‘botão de emergência’ que as livre da agonia a que estão submetidas, para além da nossa capacidade de ajudá-las”, defende, ilustrando o ponto de vista com uma metáfora impactante. “Impedir que as pessoas abandonem um quarto quando ele está em chamas é de uma crueldade absurda, e é isso que nós, enquanto sociedade, fazemos hoje”, critica.
Discussão
Adriano conta que, atualmente, “existem 14 países que já legislaram favoravelmente à morte voluntária assistida (MVA)”. “E há outros 4 que estão em vias de aprovar uma legislação mais compassiva e humana, que prioriza o bem-estar humano e oferece uma saída digna para pessoas em sofrimento insuportável”.
Ele explica que, nesses locais, há dois tipos de procedimento, a MVA autoadministrada, que é quando a pessoa aplica em si mesma a dose letal de medicamento, também conhecida como “suicídio assistido”, e a MVA administrada por terceiros, que é quando a pessoa pede que alguém, em geral um profissional de saúde, faça a aplicação, por uma preferência pessoal ou porque já não tem condições físicas de fazê-lo ela mesma.
“Os países que legalizaram a MVA têm legislações bastante parecidas em relação aos critérios para aprovação de um candidato ao procedimento. Ou seja, já há um protocolo mundial sobre como estabelecer e conduzir a morte voluntária assistida em termos legais, médicos e bioéticos. Em geral, estamos falando de indivíduos adultos, com plena capacidade mental para tomar decisões autônomas acerca de si mesmos, e que comprovem a insuportabilidade do seu sofrimento”, sustenta o jornalista.
O tema, no entanto, é sensível. Juliana Elias Duarte, médica geriatra e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – seção Minas Gerais, afirma que “é importante que as famílias conversem sobre preferências de fim de vida”.
“Frequentemente, essa conversa não existe, e, quando acontece, infelizmente, é ‘em cima da hora’, no pronto-socorro, na UTI, com a equipe do hospital, diante de uma complicação de um quadro em que a pessoa já está muito frágil”, lamenta a profissional. Ter essa conversa anteriormente facilita, segundo ela, para os dois lados, pois “tira um peso das costas dos filhos ou de pessoas da família que precisam tomar essa decisão pelo outro, e, ao mesmo tempo, a pessoa que se vê em uma situação de saúde delicada tem o seu direito prévio respeitado”.
Juliana distingue alguns aspectos a serem considerados ante a iminência do fim da vida. Do ponto de vista técnico, a chamada medicina paliativa se ajustaria a “doenças irreversíveis ou incuráveis”, afirma.
“O ideal é que as decisões sejam compartilhadas entre os profissionais de saúde, o paciente e sua família, evitando tanto o paternalismo do médico que impõe a sua decisão quanto uma atitude da família ou do paciente completamente descolada da questão técnica”, orienta Juliana. Para o autor de “O Dia em Que Eva Decidiu Morrer”, o argumento central “a favor da autonomia no fim da vida é simples e óbvio”.
“Ninguém deve ser obrigado a sofrer. Ninguém pode ser forçado a ter uma morte pavorosa. Isso é desumano. Trata-se de uma agressão institucional sobre o indivíduo. Só eu sei a dor que eu estou sentindo. Trata-se de uma liberdade individual básica. Nós tomamos milhares de decisões independentes ao longo da vida acerca de como vamos viver, por que não podemos decidir também sobre como gostaríamos de ir embora?”, questiona.
Métodos
Juliana explica as diferenças entre distanásia, ortotanásia e eutanásia, métodos próprios para lidar com a proximidade do fim da vida. Segundo a especialista, a distanásia é “o prolongamento da vida às custas de um sofrimento”. “É um excesso terapêutico de exames, medicamentos e tratamentos, é o que ocorre comumente hoje”.
No caso da ortotanásia, a ideia é de “uma morte no momento certo”, por meio de “uma série de instrumentos” que auxiliam o profissional de saúde a identificar “o grau de avanço da doença e a fragilidade do paciente” a fim de escolher o “tratamento proporcional”. “O tratamento não deve ser mais invasivo do que a doença, mas também não se ressente de nada, é a busca dessa justa medida”, esclarece.
Já a eutanásia refere-se a uma “antecipação da morte”. “Do ponto de vista ético, o objetivo implícito da palavra ‘eutanásia’ é fazer o bem, encerrar o sofrimento”, pontua. No Brasil, a prática é ilegal. Na opinião do jornalista Adriano Silva, “a grande adversária da ideia de que os indivíduos devem ter o direito de decidir sobre o seu próprio destino” é aquela que prega que eles “deveriam se submeter aos desígnios das instituições”.
“No fundo, estamos falando de uma queda de braço entre instituições que desejam controlar as pessoas e regular suas vidas, como a medicina quando busca preservar o poder do médico e a religião quando deseja estabelecer regras e dogmas sobre como as pessoas devem se comportar, e, de outro lado, indivíduos em sofrimento intenso que não concordam em se submeter a esse tipo de ingerência sobre suas vidas”, conclui.
Cuidados paliativos
A médica geriatra Juliana Elias Duarte contesta o senso corrente de que os cuidados paliativos, aqueles que procuram preservar a qualidade de vida do paciente diante do quadro de uma doença agressiva e incurável, devem começar apenas na fase final do tratamento.
“O ideal é que as medidas paliativas se iniciem lá atrás, e, à medida que a doença vai evoluindo, você vai cuidando um pouco mais dos sintomas, conversando sobre limites terapêuticos, proporcionalidade terapêutica, e estabeleça uma comunicação compassiva com a família e com o próprio paciente”, orienta a entrevistada.
Na opinião de Juliana, dessa maneira o cuidado paliativo acompanha o próprio desenvolvimento da enfermidade, “até chegar ao momento final em que ele se torna mais amplo, se torna exclusivo”, afiança. “É importante que os profissionais de saúde estejam atentos a todos os aspectos de sofrimento do paciente e dos familiares, do ponto de vista psíquico, emocional, físico, com uma rede integrada de profissionais que envolvem geriatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros”, finaliza Juliana.
FONTE: OTEMPO